Conto SteamPunk – “Rota de Fuga”, na RPG Magazine
A revista RPG Magazine deu seus primeiros passos no mundo virtual através de uma publicação em PDF cem porcento concebida para o público Internet.
O Conselho SteamPunk se orgulha de ter feito parte desta publicação com o conto “Rota de Fuga”, encomendado pela revista e que dá início a uma parceria muito especial entre os entusiastas do gênero e a RPG Magazine.
Se quiser você pode ler a revista no quadro abaixo:
Clique para ler o conto “Rota de Fuga”…
Rota de Fuga
– Deus do Céu! Basta! Basta! – murmurou o capitão em um misto de súplica e determinação enquanto a outra sessão de engrenagens diferenciais entrava em funcionamento.
O significado enigmático da frase proferida por ele começava a fazer sentido enquanto meu mecanismo, nunca antes utilizado, foi acionado pelos giroscópios ativados pelo casco que jogava com força de um lado para outro.
Eu estivera ouvindo o tempo todo, mas agora, com as novas funções acionadas, tudo parecia diferente. Embora os demais engenhos a bordo continuassem funcionando, boa parte do esforço mecânico e da força motriz fora desviado para manifestar este arremedo de consciência que lhes narra este evento.
Por instantes, enquanto engrenagens, roldanas, pinos, cordames e molas se tensionavam para dar vida a parte da decoração da biblioteca, meu corpo se desprendia da parede ancorada ao casco e testemunhava a fuga de alguns dos “convidados” do capitão.
Ao longo de toda embarcação gritos eram ouvidos e os tripulantes tentavam, a todo custo – e com minha ajuda – se livrar do redemoinho acerca do qual eu lhes avisara sem que me dessem ouvidos.
Eu já sabia do destino da nau, que acabara de emergir e começava a tomar todas as providências para poupar o máximo de vidas a bordo, mas havia pouca esperança para todas aquelas almas.
Os pistões começavam a funcionar, o vapor escapando pelas pequenas imperfeições inevitáveis em minha estrutura. O som repetitivo das engrenagens era previsível, mas por ser a primeira vez que eu as escutava e por serem estes os primeiros passos que eu ensaiava a descer do teto e da parede da biblioteca, era como se eu estivesse nascendo de uma gestação interminável.
O capitão não me dava atenção e, como que em transe, tentava resolver uma série de questões mecânicas de transferência de energia que não tinham mais qualquer relevância. Olhava-o por trás enquanto ele se esforçava com habilidade nos controles que acionara após retirar de cima deles a enorme edição do Alcorão que os escondia.
As espirais amplas que a embarcação agora descreviam pelas laterais do gigantesco redemoinho provocavam rangidos sinistros que provavelmente assustavam toda a experiente tripulação, mas o capitão continuava impassível.
Quando falei pela primeira vez ele não pestanejou, mesmo tendo o som sido mal articulado e sem significado – Agora não! – disse, aparentemente para minha manifestação.
– É o momento, capitão… – insisti no único tom monótono, metálico e sibilante que eu era capaz de usar.
Ele finalmente olhou-me, rapidamente avaliando seu projeto e a beleza barroca dos entalhes que ordenara que fossem espalhados naquele corpo que outrora fora inerte.
Qualquer outro indivíduo teria se sentido alarmado diante do que um incauto qualquer teria descrito como um aracnídeo com dez metros de uma a outra pata e com uma carranca feminina no lugar do corpo – eu era grotesca.
Sem dar maiores satisfações fez um gesto de impaciência ao fechar os controles e ir em direção a uma estante da biblioteca.
Não tinha muita certeza do que fazer. Meu único propósito era tirá-lo dali, a qualquer custo. Entretanto estava bem aparelhado para receber ordens e perceber o desejo do capitão, que certamente iam de encontro às minhas diretrizes.
Por um momento, assistindo aos esforços do capitão em abrir novo painel de controle, escondido atrás da estante, questionei-me sobre o que deveria fazer, mas não cabia a mim – e talvez eu não tivesse o ferramental necessário para tanto – ir de encontro ao que, no próximo girar de engrenagens, teria de realizar.
Ele já se dirigira a mim, muitas vezes como uma pianola superdimensionada, fazendo-o, entretanto, com um carinho peculiar de quem conhecia intimamente aquilo que criou.
– …Capitão… – tentei novamente, supondo ser capaz (e não era) de mudar meu tom de voz, o vapor diáfano me saindo pelas vias orais enquanto falava.
Não olhava para mim. Era inútil, e internamente eu sabia que não havia muito mais o que fazer a não ser arrancá-lo dos controles nos próximos segundos.
A estrutura cedia já em alguns pontos e o barulho alto da torção do casco e dos vazamentos já se fazia ouvir.
Minhas funções involuntárias disparavam sem piedade os obturadores a vapor, para vedar hermeticamente cada uma das seções da embarcação e o som de vigas se soltando do casco e rebites ricocheteando preocupavam-me.
Se alguma parte do casco se desprendesse e rompesse a parede ou o teto da nau, o cordão umbilical formado de fios, bobinas, canos, mangueiras e correias poderia ser lancetado ou seccionado, fazendo com que meu corpo corresse o risco de parar de funcionar e me privar de cumprir minha última missão.
– Capitão! – insisti como pude – Tenho ordens para tirá-lo daqui.
Toquei-lhe o ombro de leve e a reação violenta foi totalmente inesperada, tendo ele colhido um dos grandes livros de uma das prateleiras e desferido um golpe contra um dos conjuntos de lentes que sensibilizavam a câmara escura e os elementos que me permitiam interpretar a imagem que estava diante de mim.
– Esqueça a sua diretriz! Vidas têm de ser salvas! – e voltou ao trabalho, ignorando o fato de que não tinha como evitar que eu cumprisse as minhas metas.
Tentei recuperar, sem muito sucesso, o funcionamento do conjunto de lentes avariado mas logo desisti quando o casco se rompeu e água começou a invadir a biblioteca, rebites começando a explodir em todas as direções.
O capitão tentava se segurar sem deixar de tentar lidar com os controles que começavam a ser esmigalhados por trás do painel, seu mecanismo desmantelado por forças invisíveis mas totalmente previsíveis.
Eu não tinha mais alternativa e o próximo protocolo assumira o controle – ou seria eu mesmo? – fazendo-me lançar quatro de meus oito membros na direção do capitão.
A nau adernava e a força centrífuga separou-me dele, os barulhos nitidamente altos demais para o ouvido humano e as vigas começaram a invadir a biblioteca através das prateleiras da biblioteca e dos controles antes manipulados pelo capitão.
Um dos meus conjuntos funcionais foi atingido com força por destroços não identificados, inutilizando-o e impedindo correias e engrenagens de girar livremente.
O projeto do capitão era soberbo e todo o conjunto se desprendeu de minha carcaça, diminuindo meu peso e soltando-me da mistura de madeira e metal que caíra sobre mim. Um segundo conjunto redundante assumia o controle enquanto testemunhava o corpo inconsciente de meu alvo sendo jogado de encontro à grossa janela que dava para fora, onde o inferno de água e espuma se desenrolava.
Um conjunto de cliques altos marcou a mudança de situação acusada pela quebra de um sem número de giroscópios e acelerômetros ao longo da embarcação. Em resposta, um conjunto de engrenagens de movimento seccionalmente variado e controles diferenciais de intermitência assumiram para conferir maior torque e velocidade aos movimentos que eram permitidos para minha manifestação.
A qualquer testemunha de meus movimentos em meio ao aguaceiro que invadia a biblioteca, destruindo tudo e ao inferno provocado pela quebra dos elementos de decoração em milhares de ameaças em potencial, acreditaria que eu era um monstro arremetendo em direção ao capitão com intenção de matá-lo.
Tive breve condição de avaliar se aqueles movimentos eram meus ou se eram apenas nervuras mecânicas variáveis em placas diferenciais. A analogia com uma pianola me ocorreu por dois segundos até que consegui lutar contra os elementos e acolher o desfalecido capitão sob meu ventre, três de meus braços segurando-o com força enquanto os outros me davam segurança e defendiam-no e a mim mesmo dos destroços que vinham em nossa direção.
Singrei as águas com relativa facilidade, confundindo-me mais com os súbitos movimentos de um lado para o outro provocados pelo redemoínho e pelo rompimento repentino de uma série de canos estruturais nas paredes.
Lutei contra os controles de uma escotilha enquanto todas as luzes se apagavam e eu mesmo acendia minhas lanternas eletroluminescentes.
O corpo do capitão não reagia mas eu calculava que seria possível submergí-lo sem maiores problemas por cerca de 30 segundos. Mergulhei e avancei pela passagem que abrira.
A escotilha cedeu e pude ganhar o corredor seco que eu acabara de inundar. Com um pensamento provoquei o fechamento da escotilha atrás de mim, destruindo qualquer possibilidade de continuar fazendo uso do cordão umbilical, que fora espatifado por minha decisão de avançar de forma autônoma.
Eu não mais poderia me comunicar com o resto da nau, abrir e fechar escotilhas e coisas do gênero. Se tudo desse certo os controles de danos, deste corpo projetado pelo capitão, seria capaz de detectar o rompimento das cânulas umbilicais e…
Mas nada acontecera. Meu corpo, que recebia boa parte de sua força motriz das correias e das mangueiras de vapor, jazia inerte, perdendo o que restava de óleo e vapor d’água e se tornando, cada vez mais, incapaz de empreender qualquer movimento.
Os conjuntos de lentes percebiam movimento sutil no corpo do capitão, mas bem poderia ser por conta do jogar da embarcação e do esfacelamento do casco e da estrutura interna.
Quando as lentes pararam de sensibilizar o elemento ótico tive uma infinidade de segundos para entender que eu havia falhado e que minha missão fora um fracasso. Tudo mais era silêncio…
…até que percebi o capitão de forma fugidia, lutando para fazer alguma coisa nas minhas entranhas e fazendo com que sua imagem ainda diáfana fosse ficando cada vez mais clara. Eu tinha novamente meus movimentos.
A caldeira reduzida começava a funcionar e a bomba de vácuo operava em conjunto com o vapor para alimentar o engenho diferencial autônomo que deu continuidade aos meus pensamentos. Coloquei-me de pé diante de um capitão orgulhoso e comandei a liberação das cânulas umbilicais que eram agora um complexo emaranhado de destroços.
Um ruído alto e, para um humano, assustador, não abalou a mim nem aquele engenheiro genial que estava diante de mim. A água já começava a invadir o corredor quando continuamos em direção ao nosso destino.
Com o capitão sob quatro de meus membros me coloquei diante da câmara que começava a ser esmigalhada pela pressão que subia rapidamente.
Eu não esperava mais do que cumprir a diretriz que me dava motivo para minha existência e comecei a operação de abrir a câmara, preparar o lançamento e fixar seguramente o capitão no assento do batiscafo auto-propelido. Não tínhamos muito tempo.
Quando fechei a carlinga do veículo auxiliar do qual só o capitão e eu tínhamos conhecimento, a embarcação não teve mais como aguentar. O teto fechou-se sobre parte do meu corpo, que tentou reagir da melhor forma possível, me fazendo perder o funcionamento do conjunto ótico esquerdo e seis de meus membros.
Segurei as paredes como pude com os dois membros restantes e me certifiquei que o capitão estava em segurança.
A câmara se enchia d’água e ele, depois de verificar que sua fuga não tinha mais como ser evitada pelas forças do destino que então parecia tão cruel, olhou para mim.
Ele nunca me olhara daquele jeito, muito embora houvesse o que humanos chamam de carinho em sua voz, sempre que me dirigia a palavra.
O capitão colocou os cinco dedos na avantajada e resistente janela da carlinga e senti-me compelido a espalhar os sete dedos de um de meus membros no vidro em resposta, mas não podia soltar as paredes que poderiam partir a câmara em pedaços.
Reconheci o movimento de seus lábios que já vira mover daquela forma tantas vezes. Ele dizia: “Nautilus…”
E tentei responder com um inaudível “Nemo”, sem acrescentar o obrigatório “Capitão” diante do nome, pois meu corpo e todo o resto foi engolido pelas monstruosas forças de maré, enquanto o batiscafo se afastava em segurança e minha última engrenagem em movimento parava de…
Por Bruno Accioly
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Ilustração de Eduardo Rocha